06 agosto 2020

o corpo na literatura e a escrita do corpo 


| Este ensaio propõe a reconstituição do trajeto do corpo na história e a análise de corpos presentes na literatura contemporânea, para repensar como a escrita se relaciona com o corpo. (corpo, escrita, criação)


Seria possível escrever sem usar a mão? Ou sentir sem usar a pele? Ler é uma capacidade do corpo, dos olhos, ou da mente ou do cérebro? Como os personagens de um romance atuam, se não, a partir de seus corpos? O que poderia caracterizar, então, uma escrita do corpo? Será que existe uma escrita que não seja do corpo?  

Muitas pessoas, talvez não se deem conta, do estado de anestesia a que seus corpos são submetidos ao viverem em conformidade com o sistema econômico vigente, que foi construído a partir da violência, é mantido por desigualdades, e regido, sobretudo, pelo capital. Para responder às perguntas acima, vamos refazer o trajeto do corpo na história e analisar corpos presentes em prosas recentes ou ainda vibrantes na atualidade, para repensar como a escrita se relaciona com o corpo.

Será que existe espaço para o acontecimento na escrita? O que seria a escrita da experiência? O que escrita e libido tem a ver? Como sonho, cura e escrita se tocam? Pode a escrita se tornar pulsão de vida? Qual o papel da literatura no contexto atual?

Te convido a prestar atenção, agora mesmo, em como está o seu pescoço. Em deixar que suas mãos se tornem uma extensão de seu fígado. Em mudar o centro da sua presença da cabeça para qualquer outra parte do corpo e escrever à partir deste outro lugar.

Não estou falando de um exercício de imaginação. O que meu intestino pode ter a dizer, certamente não está atrelado ao que a minha mente pensa que ele sente. Falo aqui de técnicas para retomar a capacidade de sentir. Te incito a tatear comigo estes lugares na tentativa de investigar se estes questionamentos e possibilidades também fazem sentido para você, enquanto escritor.

 

ERA UMA VEZ, O CORPO

Não me parece ser novidade para ninguém que a humanidade tenha escolhido o caminho mais fácil para chegar ao progresso, abrindo mão de seu estado natural. No século XVIII, Rousseau já afirmava que o progresso corrompeu nossa felicidade e liberdade naturais, supervalorizando o capital e implantando uma cultura frívola. Esta lógica, que segundo ele, surgiu com a propriedade privada, ainda rege as leis vigentes, construídas para garantir este “direito roubado”. 

Com a colonização e a catequização dos povos nativos no século XVI, o corpo foi desenraizado e coberto por culpas e vergonhas. Os conceitos de céu e inferno, bem e mal, foram se cristalizando e novas ondas do mesmo movimento seguiram e seguem acontecendo em pleno século XX, dentro das aldeias, agora com liderança evangélica aliada ao poder público.

 Com a industrialização, o corpo foi mecanizado e uniformizado. Passou a ser tão explorado quanto a natureza. A verdade é que a Revolução Industrial significou uma transformação radical da vida humana, deliberando a exploração maciça e cruel de corpos e recursos naturais. Hoje, embora existam núcleos que defendam a economia do conhecimento da natureza e os diretos dos trabalhadores, a economia da exploração, aliada a uma mentalidade neocolonial, ainda prevalece.

Enquanto a terra e a natureza foram, portanto, apropriadas pelo capital, o corpo foi transformado em uma máquina de trabalho, reprodução e mera manutenção desta força. Para Leviatã, no século XVII, o coração já não era senão uma mola. Os nervos, nada mais que cordas. E as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento à engrenagem-corpo. Estes conceitos são muito bem alinhavados por Silvia Federici, quando diz que a primeira máquina produzida pelo capitalismo foi o corpo humano, e não a máquina a vapor ou o relógio. 

 Com o iluminismo, a razão (externa) foi supervalorizada em detrimento das paixões, desejos, apetites e sabedorias (internas) do corpo. Diversas cosmologias e sabedorias ancestrais foram descartadas ou desvalorizadas à partir deste ponto. Grada Kilomba descreve a academia como um espaço de violência epistemológica, fala sobre o mito da objetividade e denuncia a constelação racista e machista que ainda valida o conhecimento na atualidade. 

Quando as parteiras deram lugar aos médicos, mulheres e os bebês foram colocados em posição passiva no momento do parto e a ciência tornou-se a protagonista. Para procedimentos de medição e higiene hospitalar, muitas mães foram e são separadas dos corpos de seus filhos durante a primeira hora de vida do bebê, o que é fundamental para o desenvolvimento da sua capacidade de conexão humana. O número de partos humanizados cresce consideravelmente hoje em dia, mas metade das mulheres ainda acaba sendo submetida à cirurgia cesariana.

Para o estudo científico de sua anatomia, o corpo foi sendo desmembrado, assim como aconteceu com a terra. Timóteo Popygua conta que para os guaranis, as linhas imaginárias impostas pelos brancos sobre o território, não fazem o menor sentido. Na visão indígena, a terra é viva e indissociável, assim como seus corpos. A medicina ocidental foi se especializando tanto, que perdemos a noção do nosso organismo como um todo. Mesmo que tenhamos comprovado a eficácia da meditação, por exemplo, ou já tenhamos estudos em andamento sobre ervas medicinais como ayahuasca, ainda temos um sistema de saúde que foca na doença e no sintoma.

A verdade é que ao separar a magia do corpo, ele foi sendo profanado, se tornando cada vez mais vulnerável a fatores externos. A “caça às bruxas” na Europa queimou, enforcou e torturou centenas de mulheres, junto com suas histórias, ritos passados de mãe para filha, formas de enxergar o mundo e tecnologias femininas de culto ao corpo e à saúde. Foi este ataque às mulheres, segundo Silvia Federici, que instaurou definitivamente a sociedade patriarcal. E ainda que seja uma evolução termos um estudo científico sobre sonho, por exemplo, que não exclua as noções de alma, ancestralidade, cura e intuição, como o de Sidarta Ribeiro, a grande maioria das tecnologias ancestrais e femininas, seguem sendo inferiorizadas e menosprezadas.

As mulheres, os negros e os indígenas exprimiam o lado selvagem da natureza: desordenado, incontrolável, antagônico. Ao aniquilar por completo a diversidade e a expressão de suas subjetividades, o protagonismo masculino-branco-europeu desqualificou, relegou e ainda restringe as possibilidades de atuação de seus corpos, nas mais diferentes esferas. Hoje, a força não remunerada das mulheres, que ainda cuidam das crianças, das casas e dos idosos, segue sendo a base oculta da economia mundial, da mesma forma que o trabalho escravo enriqueceu os colonizadores, gerando a mão de obra que mantém o sistema em pé, embora seus corpos sigam em condições desfavoráveis. 

Junto com o saneamento básico e o tratamento de água e esgoto, veio o excesso de higiene que nos faz alheios aos nossos resíduos e ciclos. Perdemos a soberania alimentar quando deixamos de ter contato direto com a terra ou com quem produz o nosso alimento. Não sabemos de onde vem nossa comida, nem para onde vão nossos resíduos. Passamos a ingerir agrotóxicos usados pelo agronegócio, e não sabemos ao certo, os efeitos destes venenos em nossos sistemas. Comprar orgânicos ou consumir produtos de pequenos produtores locais é um privilégio de poucos, já que os preços se tornam exorbitantes. Por produzir em larga escala, a indústria alimentícia segue oferecendo ao mercado produtos baratos, mas privilegia o lucro, e não o benefício nutricional dos consumidores. 

Importante olharmos, também, para o impacto da tecnologia sobre as nossas rotinas. Com a supressão do “estado natural”, definido pela luz solar, começamos a dormir muito menos e com menor qualidade. Outro impacto brutal, aconteceu quando nossos celulares passaram a conter todos os aplicativos que precisamos para trabalhar e nos relacionar, fazendo com que estejamos ligados a eles vinte quatro horas por dia, sete dias por semana. Fica difícil saber onde nós acabamos e eles começam. A fadiga, a insônia, a ansiedade e o estresse que chegaram com a revolução do conhecimento, desdobram-se neste inicio de século em depressão, estresse, anorexia, obesidade, entre outras tantas doenças. Estamos nos transformando numa mistura de zumbis anestesiados com robôs previsíveis.

A forma como Bolsonaro reage ao enorme número de mortos causados com a pandemia do COVID19, é um exemplo nítido desta anestesia aliada a uma completa banalização da vida. Na verdade, o coração frio de Jair Bolsonaro é só mais um, dentre bilhares que perderam a capacidade de sentir ou se colocar no lugar do outro. Se o ser humano naturalizou o ato de comprar terra e vender tempo, porque não negociaria afetos ou vidas? Parece que, desde a descoberta da ferramenta (que permitiu que um grupo de primatas se impusesse sobre outro), até a criação da bomba atômica (que faz com que a relação entre territórios siga regida pela violência), a humanidade segue criando e recriando relações neuróticas, para não dizer psicopatas. Para além da já tradicional necropolítica do Estado como gestor da morte e do desaparecimento de corpos, com a eleição de Jair Bolsonaro, passamos a ser governados por um Estado que propõem aos cidadãos que cavem a sua própria cova. 

Dentro do contexto histórico que acabamos de escrever, não deveria ter sido uma surpresa que um vírus gerado da relação desrespeitosa do homem com a natureza, tenha se tornado letal à natureza do próprio homem. É impossível separar uma coisa da outra. Mas, quando Ailton Krenak diz que na cosmovisão indígena, a ideia de nos descolarmos da terra para viver numa abstração civilizatória, é completamente absurda, sendo o corpo a natureza mais próxima a cada um de nós, talvez tomá-lo de volta pode ser o início de uma revolução de dentro para fora. 

 

 O CORPO NA LITERATURA

 Ao selecionar alguns exemplos significativos de como o corpo vem sendo trabalhado nas produções literárias dos últimos dez anos, incluindo alguns clássicos que seguem sendo estudados e republicados, vou tentar ilustrar algumas das reflexões que acabamos de fazer ao percorrer a trilha do corpo na história. 

Começando com a obra A queda do Céu, de Davi Kopenawa, vamos lançar nosso olhar ao corpo original. Proponho analisarmos a linha tênue que transpassa a matéria e o espírito, dentro da cosmologia Yanomami: 

O corpo ficava deitado na rede, mas os xapiri levantam voo com a imagem e o faziam ver coisas desconhecidas. Levam a memória da pessoa consigo, em todas as direções da floresta, ao céu e para baixo da terra.

Em Paletó e eu: memórias de meu pai indígena, da Aparecida Vilaça, podemos acompanhar uma onda contemporânea de catequização evangélica:

Davam para nós um pedaço de pamonha (hóstia) que, quando colocávamos na boca sumia. (...) Eu não entendia o nome da música. Só ficava com os olhos fechados. Depois, amém. 

Te convido a analisar também, o corpo colonizador versus o corpo colonizado no romance Cadernos de Memórias Coloniais,da Isabela Fiqueiredo, que faz uma distinção muito clara dos seus personagens de acordo com a cor da pele: 

A distância entre brancos e pretos era equivalente à que existe entre diferentes espécies. Eles eram pretos, animais. Nós éramos brancos, pessoas, seres racionais. 

Entrando na sobrevalorização da ciência sobre a natureza, na obra Frankstein, da Mary Shelley, um estudante de medicina anima uma criatura a partir de cadáveres, tirando a presença feminina do processo de intermediação da vida e da morte. Esta não deixa de ser uma metáfora para a cisão entre o patriarcado e os princípios que regem a nossa natureza, explicitada no trecho: 

                                    Quão perigosa é a aquisição do conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite.            

Em Carvão Animal, da Ana Paula Maia, vemos a banalização da vida, o afastamento da compreensão da natureza cíclica do corpo, e a pulsão de morte que rege toda a lógica do sistema que constitui a nossa sociedade: 

                                    Daqui a algumas décadas ou uma centena de anos haverá mais corpos embaixo da terra do que sobre ela. Estaremos pisando em antepassados, vizinhos, parentes e inimigos, como pisamos em grama seca; sem nos importarmos. 

Sobre os ossos dos mortos, da Olga Tokarczuk, mostra um corpo em estado de envelhecimento que se resume à doenças e dores. A protagonista nos faz experimentar a falência de seus órgãos e tecidos, fazendo um paralelo com a desvalorização da sua voz idosa e impotente, frente à realidade de sua vila: 

Às vezes, tenho a impressão de que não sou constituída de nada além de sintomas de doença – sou um fantasma feito de dor. (...) Saio de meu próprio corpo, que desliza de mim como uma roupa velha. Debaixo dela, sou mais fina, delicada, quase transparente.  

Em A Vegetariana, de Han Kang, nos deparamos com limiares entre a loucura e a sanidade, com um corpo que denuncia tabus e violências, mas segue preso às amarras familiares, da ciência e do sistema, cada vez mais excluído da sociedade:

Yeonghye permaneceu internada em um hospital psiquiátrico... Continuava a não comer carne, e quando a refeição vinha com um pedaço de animal, saía correndo aos gritos. Nos dias de sol forte, ela se punha da janela e abria os botões da roupa, para expor os seios ao ar livre. 

Em Esse cabelo, da Djaimilia Pereira de Almeida, vemos como a história do cabelo crespo da protagonista relata, de forma mais ou menos direta, a relação entre países e continentes, uma geopolítica:

Dizer que acordo de juba por desmazelo é já dizer que acordo todos os dias com um mínimo de vergonha ou um motivo para me rir de mim mesma ao espelho: um motivo vivido com impaciência e às vezes com raiva (...) Não me ficaria bem, imagino, fantasiar a reconquista da minha cabeça pelos sobreviventes lisos da base da nuca.

Em O corpo dela e outras farras, de Carmen Maria Machado, vamos analisar brevemente o conto Ponto do Marido, em que a protagonista lida com seus desejos e com o machismo estrutural, em especial na cirurgia a pedido de seu marido, sem seu consentimento, para apertar o períneo, logo após ter parido:

Levam o bebê embora para poderem dar um jeito em mim onde cortaram. (...) E então estou de novo acordada, bem acordada, e meu marido não está ali nem o médico. E o bebê, onde está. (...) Você está toda costurada, não se preocupe, diz ele. Bem fechadinha e apertada, para a felicidade de todo mundo. A enfermeira vai lhe falar sobre a recuperação. 

Em Se eu fosse puta, da Amara Moira, vamos lançar nosso olhar para este corpo que além de fazer uma transição de gênero, é também profissional do sexo, e só pertence aos submundos da sociedade, lugares para onde toda a diferença foi relegada: 

E não eram os corpos sem nome, vários, variados, via de regra fora do padrão, em diversos graus de higiene e saúde, o que me assustava. (...) Sexo nunca foi foda (…). Meu medo era, antes, a violência da exclusão, me ver pária da noite pro dia, tratada feito lixo, perder (...) o direito de continuar estudando, de poder buscar emprego que não fosse esse que não consideram emprego: puta.

Em Metamorfose, de Franz Kafka, podemos trazer à tona o corpo excluído dos benefícios do sistema produtivo, por um lado, e dos benefícios de toda sofisticação, por outro. Ele não tem rosto, não tem imagem, não se distingue de uma engrenagem. Ou de um inseto:

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. (...) Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos. Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho.  

À partir do conto A Sentinela, escrito por Arthur C. Clarke e adaptado para o cinema por Stanley Kubrick com o nome “2001: Uma Odisseia no Espaço”, vamos examinar a relação conflituosa entre homem e máquina: 

Sei que você e Frank estão planejavam desconectar-me. Desculpe Dave, não posso deixar isso acontecer. Embora tenham tomado todas as precauções na cápsula, para que eu não os ouvisse, pude ler os seus lábios. Dave, esta conversa já não faz mais sentido. Adeus. 

No conto Me alugo para sonharde Gabriel Garcia Márquez, vamos analisar a tomada como profissão da capacidade de sonhar e prever o futuro da personagem Frau Frida: 

– Eu me alugo para sonhar. Na realidade, era seu único ofício. (...) desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. 

Carlos Castaneda, no livro A Erva do Diabo, nos permite experimentar através da leitura, experiências com plantas alucinógenas. Nos trechos abaixo, vamos analisar o limiar fino entre a perda do controle e a expansão da sensorialidade: 

Queria comentar sobre o estranho aspecto da água, mas o que se seguiu não foi fala: era a sensação de meus pensamentos não falados saindo pela minha boca em forma líquida. Era uma sensação fácil de vômito sem as contrações do diafragma. Era um agradável fluxo de palavras líquidas.

Em Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, através do mito de Robinson Crusoé, observamos um corpo aleijado pela civilização, que ao constatar a falência de suas ferramentas de controle, se rende aos desejos mais verdadeiros de seu corpo, retomando a sua conexão com a natureza:  

Sexta-feira deixou-o entregue à limpeza e dirigiu-se, a dançar, pela floresta. (...) Para Robinson, o desaparecimento de Sexta-feira e o fracasso do arrozal traduziam a fragilidade e o fracasso da sua tentativa de domesticação.

 

A ESCRITA DO CORPO

À partir deste ponto, vamos entrar na ceara do corpo como método. Te convido, portanto, a voltar a atenção novamente para o seu corpo, como fizemos na introdução.  

Como você está se sentindo agora? 

Muitas pessoas congelam quando ouvem esta pergunta, e isso acontece porque perdemos a capacidade de sentir. Por todos os motivos elencados e ilustrados acima, nossas presenças estão tão concentradas na cabeça ou fora do corpo, de modo geral, que a pergunta acima deixa de fazer sentido. As respostas tendem a se restringir a: “estou bem” ou “estou mal”. Noutras vezes, racionalizamos o que  o corpo sente, sem de fato, nos silenciar o suficiente para realmente sentir.

Vamos olhar para o corpo, neste ensaio, de forma multidimensional. Não estamos falando do corpo da ciência, que só considera os aspectos físicos. Vamos incluir sentimentos, emoções, memórias, nosso espírito e a alma. O corpo a que me refiro é, sobretudo, fenômeno e acontecimento. Uma ferramenta de experimentação da realidade. Um espaço de revelações, mistérios, sabedorias, intuições, prazeres, dores e outras infinitas possibilidades. 

Mas, o que seria uma escrita do corpo? O que a caracterizaria? 

Como escrita, vamos considerar a representação da linguagem falada por meio de signos gráficos que constituem textos autorais, com foco nas obras literárias ficcionais ou não-ficcionais que incluem, mas não se restringem a contos, poesias, ensaios, crônicas e romances. Estão incluídos os textos híbridos, que não podem ser classificados nas categorias acima.

A “Escrita do corpo” é aquela que inclui tudo aquilo que foi excluído com o processo civilizatório elencado no item “ERA UMA VEZ, O CORPO”: a relação com o sonho, com a magia, com a libido, com o acontecimento e com a experiência, o resgate das nossas subjetividades, presenças e sensorialidades, a capacidade de amar e ser empático, a retomada da diversidade e a relação com a natureza. 

Para podermos adentrar um pouco mais em suas características, é importante alinharmos também o conceito de processo criativo. Parto aqui, dos estudos da Cecília de Almeida Salles e do conceito de crítica genética, uma investigação que vê a obra à partir de sua construção. Vamos olhar para o processo criativo como uma rede viva de acontecimentos que está sempre em mutação, entrelaçando seus fragmentos e provocando deslocamentos e novos arranjos para a criação. 

Quando falarmos de criação, entenda como um rizoma onde todos os pontos estão interconectados e sempre disponíveis para novas conexões. Quanto mais trocas, experiências e interações, mais fértil se torna o ambiente e as ideias.

Nos interessa aqui, o autor que não é um sujeito isolado em sua própria imaginação, mas aquele que tece relações e interações em sua rede durante o seu processo de criação. O autor que transforma o mundo ao seu redor.
 Aquele ou aquela que colhe aquilo que lhe interessa do seu ambiente cultural, geográfico e/ou histórico, e junto da sua memória e experiência, o ressignifica por meio do seu ato criador. 

 

INQUIETAÇÕES 

Vou chamar de inquietações, tudo aquilo que te faz perder o sono, seus conflitos, suas paixões, obsessões, seus interesses, suas ansiedades, desejos, aquilo que te escolhe, seus vícios. Os temas que circundam suas criações.

Podemos considerar inquietações ligadas à “Escrita do corpo”, todos os itens elencados em “ERA UMA VEZ, O CORPO”: a supressão do homem natural pelo artificial, do corpo selvagem pelo domesticado, as violências, anestesias e silenciamentos causados pelo sistema patriarcal, todo o tipo de descolonização de olhares, a retomada da diversidade, da pluralidade de vozes e de subjetividades excluídas com o processo civilizatório. 

Nesta modalidade de escrita, é importante se perguntar se é você (como autor) quem domina seus temas, ou se são eles (suas questões e traumas) que te dominam. Outra questão fundamental é se questionar como causar em outros corpos, uma inquietação que você sente no seu corpo.
Você fala sempre do mesmo assunto? De que assuntos suas escritas tratam? Como colocar a razão para atuar de forma integrada, sem hierarquia, em conjunto com o restante do corpo, e não soberana ao todo, ou como agente de rupturas? 

Como exercício da “Escrita do Corpo”, sempre que encontrar uma inquietação, uma obsessão, ou um tema que lhe atrai, ao invés de apenas buscar por certezas sobre o assunto, formular questionamentos que podem levar a novos questionamentos, mantendo-se aberto/a para os conteúdos do seu inconsciente. 

Outra técnica que tenho usado, é silenciar a mente e perguntar ao sonho, ao corpo e à vida, sobre os temas que me inquietam. Dando o devido espaço e adotando uma postura de escuta, a vida, o sonho e o corpo irão trazer respostas às suas maneiras. Ao treinar esta técnica, você terá plena consciência do momento em que resolveu a questão. Este método é perigoso para as pessoas com tendência à fantasia e capacidade imaginativa muito desenvolvida, pois podem se confundir. Também é um método difícil para pessoas que são, preponderantemente, racionais. Para um bom desempenho deste caminho criativo, é essencial que o autor pratique a meditação.

Os temas mais latentes da “Escrita do Corpo”, normalmente, se relacionam com o seu corpo, manifestando-se (muitas vezes) em forma de doença ou características peculiares. Também pode se ligar à cor da sua pele, sua raça, descendência, sexo, escolhas sexuais, situação econômica e classe social. Invariavelmente, estão ligados às nossas memórias e em como nós as significamos.

A artista visual Ana Mendieta e a escritora Djamila Ribeiro, são exemplos de processos criativos centrados no tema. Quando falamos em Ana Mendieta, falamos em feminismo. Quando lembramos da Djamila Ribeiro, automaticamente, trazemos a questão do racismo à tona.

 

DIÁLOGOS

 Como diálogos podemos considerar os seus interlocutores no contexto cultural, social, politico e geográfico. Estamos falando das suas referências nas mais diferentes linguagens: livros, filmes, músicas, teatro, dança, revistas, etc. Também contam os seus colegas escritores, grupos de estudo, professores, instagramers, blogueiros etc. Qualquer pessoa, imagem ou situação que faça seus poros arrepiarem, pode ser considerada referência da “Escrita do corpo”. 

Para além das obras elencadas no item “O CORPO NA LITERATURA” e as que compõe a bibliografia deste ensaio, podem alimentar o processo criativo da “Escrita do corpo”, toda obra e autor que tenha o corpo como objeto direto de estudo ou pesquise questões ligadas às suas potências renegadas, menosprezadas ou ainda desconhecidas. 

Na “Escrita do corpo”, é importante se perguntar se sua pesquisa amplia sua capacidade de sentir, ou se ela te restringe de experimentar a vida.
 Quem são as pessoas com quem você escolheu trocar sobre seu processo? Que técnicas te ajudam e quais te restringem de penetrar nas experiências do corpo?
Já tentou dialogar com seu próprio corpo e com os seus sonhos? Se seu trabalho tem um conceito bem definido, pergunte-se se este conceito liberta ou engessa você. Você tenta copiar ou aprender com suas referências? Como pode colocar seu corpo em posição de experimentar aquele conceito que você leu ou formulou?
 Com quem você conversa sobre seu trabalho? Frequenta algum grupo?
Compartilha sobre seu processo com alguém?
 Manter-se poroso às experiências do mundo é fundamental para trilhar este caminho criativo.

Como exercício deste item, proponho o deslocamento do corpo para situações onde o autor poderá acessar o ponto central de suas inquietações. Se sua escrita quer tratar da relação entre o homem e a natureza numa floresta do Japão, precisa viajar para o Japão, não adianta apenas ver filmes e ler livros sobre o Japão. Se você quer resgatar subjetividades da cultura indígena, precisa conviver e criar laços com etnias e frequentar aldeias. Não adianta ler sobre o assunto. A experiência, o encontro e o deslocamento são fundamentais para a “Escrita do corpo”. 

Outro ponto essencial que temos que levar em consideração ao falar de diálogo, é o meio a que nos inserimos. Se queremos retomar o corpo original e escrever de forma vibrante, sensorial e visceral, precisamos nos reaproximar da natureza, estar envoltos a seres vivos, diversos e vibrantes. Na cidade, tudo é mediado por humanos e para humanos. Se queremos falar de violência, precisamos encontrar em nossos corpos onde ela acontece e frequentar ambientes onde a violência está instaurada. O meio interfere, diretamente, na percepção do tempo e do espaço, nos acontecimento e em nossa capacidade de sentir. 

Pela razão acima, as residências artísticas e literárias são espaços extremamente propícios para a “Escrita do corpo”. Cada uma à sua forma, propicia diálogo com outros autores, deslocamento da rede criativa, novos arranjos para a criação, encontro com meios não viciados ou domesticados, experiências que ativam memórias, e formas diferentes do corpo se relacionar com o espaço e com o tempo.

O artista visual Bruno Moreschi e o escritor Tiago Novaes, são exemplos de processos criativos onde o diálogo se sobressai. Bruno Moreschi criou o ARTBOOK, livro composto por vários artistas e obras, todas criadas por Bruno, que demandou uma extensa pesquisa de referências. Nos livros pulicados por Tiago Novaes, o deslocamento e a “Escrita de viagem” são sempre pontos fortes. Ele costuma se deslocar para os locais onde se passam seus livros, dialogar com obras literárias locais, e partir de uma pesquisa aprofundada e vivencial. 

 

BIOGRAFIA

Outro característica essencial da “Escrita do corpo”, é a ligação da escrita com a biografia ou a experiência de vida do autor. Considere aqui as suas memórias, sonhos, experiências, medos, aspirações, desejos, traumas, curas, história pessoal e desenvolvimento psicológico. 

Se tratando de uma escrita do corpo, é impossível escrever à partir de projeções mentais, leituras ou fantasias sobre determinado assunto. É essencial sentir o cheiro do lugar, pisar naquele território, construir personagens que tenham ligação com questões que o autor pode sentir no seu corpo, ou são essencialmente suas. Por ser uma escrita que pretende partir de uma retomada da capacidade de sentir, ela necessariamente parte da matéria bruta vivencial do autor.

Esta questão esbarra no conceito de lugar de fala, excluindo a escrita de autores que, com suas projeções intelectuais, tomam o lugar de pessoas que precisam de espaço para trazer as suas falas à tona. Inclui todos os trabalhos de autores que criam espaço para expressão singular de corpos excluídos com a colonização, facilitando a escrita e a publicação de autores emergentes, cujas feridas seguem em franco estado de cicatrização. 

Para investigar se sua criação ressoa com a “Escrita do corpo”, é importante se perguntar se a biografia é uma matéria prima expressiva de sua escrita. E se você já se identifica com este caminho criativo, se questione se sua historia pessoal dificulta que você enxergue o mundo com distanciamento. Pergunte-se também, se ela consome tanto do seu processo que não sobra espaço para referências externas. Você confunde coisas que leu, assistiu, com experiências vividas, genuinamente suas? Deixar de ser refém da própria biografia e passar a olhá-la com distanciamento é fundamental para trilhar este caminho criativo. Por esta razão, é tão importante se conhecer e ser verdadeiro consigo mesmo.


Como exercício, proponho anotar diariamente num caderno os seus sonhos, as dores físicas, as questões emocionais, as coisas que fazem seu coração acelerar, que alteram a sua libido, os acontecimentos que te tiram do sério, e, também, as suas dúvidas. Fazer uma linha da vida, elencando vivências de acordo com o filtro que escolher, é outro exercício que tenho usado bastante. É possível também elencar as memórias de acordo com sentimentos como raiva, nojo e medo, ou temas como violência e abuso.

Ao olhar para suas anotações, importante separar o gatilho emocional da reação, criar espaço entre a emoção e aquilo que você faz com ela. O hábito da anotação cria fluxo de escrita e ajuda a criar distanciamento entre você e suas questões, para no momento certo, poder usar a potencia vital contida nelas, para criar. É um efeito parecido com a meditação, no sentido de criar distanciamento das questões que nos tornam reféns. Estar profundamente inserido na experiência, não é o mesmo que ter a sua presença capturada por ela. Também não é afastar-se tanto a ponto de tornar-se alheio aos acontecimentos do mundo, ou ao seu próprio corpo. 

Quando fazemos todo o dia a mesma coisa, frequentamos sempre os mesmos espaços, comemos as mesmas coisas e conversamos sempre com as mesmas pessoas, nossa rede de criação se empobrece, e o mesmo acontece com nossas ideias. Proporcionar ao corpo novas experiências é fundamental para mantê-lo vivo. Entendendo o corpo enquanto espaço, se levamos a nossa presença sempre para as mesmas áreas, acabamos por engessar nossos temperamentos e atuações. E, com certeza, isso também vai acontecer com a nossa escrita. É importante lembrar que todos nós, em maior ou menor medida, fomos submetidos a este sistema que anestesia corpos, silencia vozes e manipula comportamentos. 

As técnicas para retomar a capacidade de sentir, resgatar a libido, a pulsão de vida e exercitar a empatia, que podem ser aplicadas à “Escrita do corpo”, são inúmeras e muito variadas. Esta pesquisa, portanto, pretende trazer técnicas utilizadas pela dança, pelo yoga, pelo teatro, pela performance, pela meditação e outras atividades que tem o corpo como suporte central como método para acessar gatilhos criativos que se encontram escondidos ou anestesiados no corpo. Massagens, ativações, movimentos e respirações também são ótimas ferramentas. Todas estas atividades são capazes de mudar a química do corpo, a sua vibração e, certamente, interferem na “Escrita do corpo”. 

Outro aspecto importante, é a relação a “Escrita do corpo” e a “Escrita do trauma”. Entenda trauma aqui, como aquilo que captura a nossa presença, criando áreas no corpo desprovidas de calor ou com anomalias, nos colocando diversas vezes na mesma situação, com mudança apenas de cenários e atores. É muito comum que os traumas sejam tratados por autores em suas obras até que consigam digerir por completo a sua origem, materializando a cura. Importante perceber que realizar algo como, por exemplo, um texto sobre um abuso sofrido, não é o mesmo que materializar no corpo, a possibilidade de voltar a sentir prazer em situações similares à que gerou o trauma. Mas esta dinâmica pode ser invertida.

A terapia sistêmica fenomenológica integrativa e o psicodrama, tem o corpo como principal acesso ao trauma e são indicados para autores que pretendem trilhar o caminho da “Escrita do corpo”. A TSFI, em especial, alcança todos os sistemas que um corpo pode pertencer, nos ajudando a enxergar as diversas constelações que fazemos parte. Por ser uma prática fenomenológica, a todo momento abre espaço para as subjetividades sem taxar as experiências, catalogar condutas ou classificar perfis. Por ser integrativa, tende a expandir a presença, costurando as partes que se perderam com os processos traumáticos. Muitas vezes estes processos podem ter acontecido com a própria pessoa, ou terem sido carregadas através da genética. Quando criamos personagens, estamos criando entidades, e elas fazem parte dos complexos sistemas a que pertencemos ou com os quais ressoamos. Esta técnica, em especial, nos permite acessar todas estas dimensões.

Importante englobar aqui também, a potente ferramenta das plantas de poder xamânicas, que proporcionam experiências ímpar de expansão da consciência e cura. Este tipo de trabalho ativa novas áreas no cérebro e transforma a química do corpo, permitindo que o autor acesse experiências novas na vida e também na escrita. 

A fotógrafa Nan Goldin e o escritor Ricardo Lísias, são ótimos exemplos de processos criativos onde a biografia é o eixo central. Nan Golden é famosa pelas fotografias que fazia de seu próprio corpo espancado e/ou deteriorado pelo uso de drogas. Ricardo Lísias ficou conhecido pelo romance de auto-ficção Divórcio, onde relata de forma muito direta a história da sua separação.

 

GESTOS

A “Escrita do corpo” é especialmente ligada ao gesto, que neste ensaio, vamos considerar a maneira como cada autor transforma o mundo e escreve. Falamos aqui da sua singularidade: procedimentos, métodos, estilo, escolhas. Vale lembrar, que me apoio para definir este conceito, nas pesquisas da Cecília de Almeida Salles sobre processo de criação artística dentro da crítica genética.

Os gestos compõem o DNA do nosso trabalho. É no gesto que o autor estabelece sua subjetividade. Tomar consciências dos gestos enquanto autor é fundamental para estabelecer a própria voz. Eles se relacionam com nosso “eu-autor” e com o que queremos provocar no publico. Estão, estreitamente ligados com a forma como movemos nosso corpo, com nossas ações e com os verbos que percebemos atuando em nossa vida e nos nossos textos. 

Para identificar com clareza que gestos compõem a sua escrita, é importante se perguntar que ações ou verbos definem seu processo de criação.
 Consegue identificar arquétipos de quem você é como autor?
Como você escolhe transformar a sua matéria prima? Como você a ressignifica? O que você quer causar no seu público?

É importante distinguir o “gesto emissor”, relacionado a quem você é enquanto autor, sua identidade e seus procedimentos, do “gesto receptor”, que está ligado ao que você quer causar no público. As duas coisas podem caminhar juntas, mas acontece muitas vezes, de serem o extremo oposto. É importante alinhar aquilo que está sendo emitido, com aquilo que está sendo recebido pelo leitor. Quando isso não acontece, certamente existem muitas coisas inconscientes que precisam ser acessadas pelo autor. É importante refletir também, se a sua intenção comunicativa está em linha com os gestos que você está emitindo, e com o que os seus leitores estão recebendo. 

Neste contexto, são extremamente importantes as trocas durante o processo criativo com colegas ou leitores experimentais que venham de múltiplas origens, no sentido de criar um espectro amplo e diverso de opiniões sobre o texto e a escrita. 

Muitas vezes, os nossos gestos mais expressivos são tão automáticos, inconscientes e inerentes a quem somos, ou a quem nos tornamos para pertencer aos sistemas que fazemos parte, que não conseguimos enxergar facilmente. Vou elencar aqui, portanto, alguns arquétipos que podem nos ajudar a refletir:

o Caçador: mover-se em silencio e ataca a presa de surpresa

o Observador: reproduz experiências autônomas da realidade sem dirigi-la 

o Poeta: busca imagens que transcendam a palidez da realidade 

o Problematizador: elabora um ângulo original sobre o mundo e cria reflexão 

o Provocador: perturba a realidade e choca o publico
com algo impactante 

o Engajador: para o ativista, todo ato é político, ele quer transformar o mundo 

o Pesquisador: investiga o "o outro" ou uma cultura estrangeira

o Meta-linguista: reflete sobre as próprias práticas, discute a linguagem 

o Colecionador: junta objetos por meio de regras de agrupamento 

o Exorcizador: reúne as mazelas do mundo e as exorciza

o Integrador : une opostos, junta pedaços, costura, constrói pontes

o Compassivo: revela compaixão, se compadece

o Encantador: cria encantos à partir da combinação de palavras

o Curativo: acionam catarses e apontam caminhos novos para existência


Como exercício, proponho que tente identificar quais são as ações ou verbos que caracterizam seus livros, sejam publicados ou em andamento. Escreva também que ações você mais executa na vida. Depois compare as respostas e reflita sobre a relação entre os seus gestos, e os gestos que aparecem nos seus textos. Muitas vezes são completamente antagônicos, opostos até, noutras, exatamente iguais. De qualquer forma, tomar consciência deles é extremamente potente, facilita o encontro com a própria voz e nos possibilita falar sobre nossa escrita com propriedade. 

Escrever adotando um novo gesto, nunca antes experimentado, é outra maneira de exercitar a criatividade e sair dos lugares viciados ou comuns. Este exercício pode se expandir também para condutas de vida. Colocar o corpo para experimentar novas experiências, gestos e posições fora do conforto ou da automação, ajudam muito a expandir a capacidade criativa. Falo da criação, aqui também, em termos de protagonizar a própria vida, possibilitar novas experiências e transformar os relacionamentos viciados ou adoecidos.

Ampliar o campo sensorial pode ajudar a trazer gestos novos de forma espontânea. Existem, para isso, inúmeros exercícios de criatividade. Um exemplo é escrever à partir de uma música. Deslocar a presença da cabeça para outras aéreas do corpo em busca de novos gatilhos criativos. Acessar os túneis do tempo e espaço. Escrever à partir de memórias olfativas. Passar um dia inteiro com vendas nos olhos ou sem falar. Fazer jejum, ficar uma noite sem dormir, e assim por diante. 

As escolhas técnicas também são essenciais quando pensamos na intenção comunicativa, no “gesto emitido” e no “gesto recebido”. Para além do conteúdo que é comunicado, a forma do texto e o trabalho de linguagem imprimem características peculiares que precisam transpirar os gestos elegidos e a mensagem principal. Para determinar a respiração, o ritmo e a pulsação que queremos dar ao texto, escolhas como tamanho de frase e combinação de palavras, são essenciais. 

Pela minha experiência acompanhando e observando processos criativos de mais de trezentos autores nos últimos anos, entre escritores e artistas visuais, posso dizer que os mais maduros tem plena consciência de suas escolhas e os menos maduros, são mais espontâneos e entregues à novas experiências. São raros os que conseguem unir as duas características: tomar consciência sem engessar a pré-disposição para errar, experimentar o novo, ou se reinventar.

O artista Paulo Nazareth e o escritor Mia Couto, são ótimos exemplos de processos criativos onde o gesto é o eixo central. As obras do Paulo Nazareth partem do ato de caminhar para traçar narrativas irônicas, poéticas e engajadas. Mia Couto é conhecido pelas prosas poéticas que retratam a sua terra, a fala do seu povo, e os encantos da natureza. 


O CORPO DO AUTOR 

Gostaria de propor uma reflexão sobre a extrema responsabilidade de termos o direito à voz e sobre o papel da literatura no contexto que estamos vivendo. Que relações podemos traçar entre nossos corpos, enquanto autores, e o alcance do nosso trabalho? Falo aqui de estarmos comprometidos em nos tornar melhores pessoas, com corpos mais vivos, expandindo também a nossa disponibilidade para amar. 

Proponho repensarmos o mito limitante que diz que o autor ou as obras literárias mais potentes, são as que denunciam os lugares mais sombrios. Será que para além de prosas que mostrem a nossa catástrofe humana, desconstruam instituições falidas, ou denunciem violências, já não temos ferramentas suficientes para produzir também, uma literatura que seja, além de engajada, cada vez mais reconstrutiva? 

Se a escrita e a autoria já esteve ligada ao egoísmo e à mera expressão individual de pessoas privilegiadas, em tempos em que humanidade está, literalmente, adoecendo e morrendo, que papel teria a literatura, ou temos nós, os autores?

Para além de abrirmos espaço para escutar vozes que nunca foram ouvidas, talvez seja o momento também de fomentar a produção de livros que acolhem, que resgatem, que transformem, cultivem a vida, que integrem o que foi despedaçado e nos devolva o que foi tirado: O CORPO. 

  

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