O OVO, A PANDEMIA E A GALINHA | ENSAIO
O ovo, a pandemia e a galinha | ENSAIO
O OVO E A QUARENTENA SÃO COISAS SUSPENSAS
Coloco-me em frente ao computador, em plena quarentena, para escrever este ensaio inspirada no conto “O ovo e a galinha” da Clarice Lispector. Aperto “COMMAND C” para copiar alguns trechos, e depois “COMMAND V” para colá-los aqui. Aparece um círculo colorido sobre o arquivo que indica uma ação no gerúndio. O ícone segue rodando. Insisto nos cliques. Tento as teclas. Aguardo. Um minuto, dois, dez. Não há o que fazer. Será que é vírus? Desligo a máquina. Desisto. Quem sabe outro dia.
Sento meus ísquios no sofá com o computador no colo. Aperto “COMMAND C” para copiar os trechos que quero usar e depois “COMMAND V” para colá-los aqui. Aparece o mesmo círculo sobre o arquivo. O ícone segue rodando. Nada acontece. Tento outras teclas. Aguardo. Um minuto, dois, dez. De novo? Só pode ser vírus! Decido reiniciar a máquina.
O computador na minha frente, a quarentena nas minhas costas. Sigo tentando escrever inspirada no conto “O ovo e a galinha” da Clarice Lispector. Aperto “COMMAND C” para copiar os trechos de novo, e depois “COMMAND V” para colá-los. O círculo sobre o arquivo surge e segue rodando mais uma vez. Algo parece estar pesado demais. Aguardo. Um minuto, dois, dez. Quinze dias, meses. Custo a acreditar na realidade. É vírus e não há vacina. Melhor reiniciar de outro lugar.
AO OVO DEDICO A NAÇÃO CHINESA
As lendas parecem existir para ilustrar coisas que não são de entender, ao menos é assim que eu me relaciono com elas. O surgimento do Universo na mitologia chinesa, por exemplo, usa um ovo posicionado na vertical. A superfície interna da casca representa o céu, a gema de ovo simboliza a Terra, e a clara, o oceano primitivo onde a Terra se insere.
Conta-se que Pan-Ku, o primeiro ser vivo que já existiu, também habitava este ovo, e no decorrer de dezoito mil anos aumentou seu tamanho diariamente em muitos metros, tornando-se um gigante. O seu crescimento fez com que a casca do ovo rompesse e quebrasse, distanciando o céu da Terra e o levando à morte. A cabeça de Pan-Ku transformou-se em uma grande montanha sagrada, os olhos deram origem ao sol e à lua, e os seus cabelos se transformaram em árvores.
Mas o que dizer das coisas ruins que existem no mundo, também vieram de Pan-Ku? Que parte dele teria originado as doenças e as pandemias? Será que podemos atribuir a Pan-Ku ou à China o surgimento da COVID19?
É claro que o vírus não é chinês, mesmo que possamos rastrear sua origem em morcegos que habitam cavernas na China e em pangolins asiáticos, animais apontados como hospedeiros intermediários. O mesmo vale para a doença causada por ele. As epidemias são fenômenos sociais e políticos. Embora o mito de Pan-Ku tenha sua origem na China, ele diz respeito à história da humanidade, e o mesmo parece acontecer com a pandemia.
Ainda assim, para quem não conhece, o pangolim é um animal parecido com o tamanduá sul-americano ou com o tatu-bola, mas é carnívoro e se alimenta de morcegos e outros animais. Pode ser encontrado na África e na Ásia, onde é caçado e comido como iguaria, em especial na China. Foi apresentado ao mundo através da série Pokémon e, hoje em dia, “O que é um pangolim?” é uma das perguntas mais frequentes dos brasileiros que acessam o Google para tentar saber mais sobre a origem da COVID-19.
A verdade é que sabemos muito pouco sobre a cultura chinesa, em especial este aspecto particular de sua culinária, conhecido como “jinbu”, que significa, mais ou menos, “preencher vazios”. Algumas de suas práticas são folclóricas ou metafísicas até, mas mesmo entre os chineses que não as seguem, o conceito é arraigado. Independente de qual seja o problema, é melhor curar com um alimento do que com um remédio. As doenças são o resultado de um corpo esgotado de energia. O mais importante é preencher o vazio energético e acredita-se que plantas e animais raros são os melhores para essa reposição, especialmente se ingeridos frescos ou crus.
Diz-se que o inverno é a estação em que o corpo mais precisa de alimentos “jinbu” e talvez isso explique porque a epidemia de SARS e a de COVID eclodiram nessa época do ano. Existe uma longa lista de alimentos exóticos que são considerados “jinbu”, como serpentes ou pênis de touros e cavalos. Os morcegos, por exemplo, são considerados bons para restaurar a visão. As bexigas e bile de ursos vivos são usadas contra a icterícia. O osso de tigre é indicado para ereções. A carne de mustangue aliada à da cobra, cura a insônia. E por fim, a carne de cachorro é a opção mais comum entre chineses com menos possibilidades financeiras.
Investigar as causas possíveis por trás da pandemia é uma reação compreensível, afinal, encontrar os “culpados” pode nos impedir de passar por algo semelhante de novo. Mas que país é este que parece sempre do outro lado do mundo não importa em que parte do mundo se esteja? Que nos coloca diante de rostos e costumes quase inconcebíveis, de tão diferentes do nosso? Que ora adota um regime comunista, ora adere de forma voraz ao capitalismo?
Como se não bastasse serem relacionados pelo mundo ao conceito de “xing-ling”, que em tradução literal significa “zero estrelas” ou produtos de má qualidade, hoje são desdenhados também pelo surgimento da COVID-19, mesmo que o mal-trato a animais seja praticado no mundo todo.
Se ingerir animais exóticos para retomada da vitalidade é algo que os chineses sempre fizeram, nos sobra questionar se não é o nosso vazio existencial que está crescendo da mesma forma que cresceu o gigante Pan-Ku na mitologia chinesa. A natureza parece escrever reto por linhas curvas e seguirá buscando seu equilíbrio. Que país será o próximo a quebrar a casca e nos dar a chance de reinventar a existência?
O OVO, O VÍRUS OU A GALINHA
Quem nasceu primeiro? Tenho duvidado se vale a pena gastar palavras tentando entender a origem da pandemia. Não seria o mesmo que refletir se o ser humano é uma brincadeira de Deus ou se é Deus que é uma broma do Homem?
Ainda que Deus, um vírus ou o amor, sejam invisíveis a olho nu, eles se manifestam através de corpos e têm suas existências atreladas à matéria, afirmariam em tempos distintos, os filósofos Epicuro e Nietzsche. Não haveria Deus se não houvesse o ovo, a galinha ou o Homem. Não haveria ovo, galinha ou Homem, se não houvesse Deus.
A alma, para Epicuro, está no corpo de uma galinha ou de um ser humano da mesma forma que o corpo de um ser humano ou de uma galinha dão materialidade à alma, que permeia nossos espaços vazios. Talvez habite nossos peitos, logo acima do estômago, mas se desfará quando nossos átomos se desintegrarem. A consciência de Nietzsche, por outro lado, era um joguete do corpo. Para ele, a noção de consciência esfria a nossa animalidade. Não convencem até que se desloque da mente para o pescoço, aquecendo o dorso e arrepiando os poros.
Embora a criação de um vírus seja tão inexplicável quanto o surgimento de um ovo ou de uma galinha, a COVID-19 é demasiadamente palpável, levando a óbito centenas de milhares de corpos humanos. Talvez a pergunta fundamental passe a ser se esse vírus é uma criatura de Deus ou do Homem. Ou ainda, como pode algo criado, por um, ou por outro, ter a capacidade de acabar com aquilo que os funda. Mas independente de quem tenha surgido primeiro, a verdade é que o ovo tem uma existência avessa à do vírus.
Se de ovo em ovo chega-se a Deus, de vírus em vírus deixaremos de chegar, diria Clarisse.
TANTO ROLOU NO ESPAÇO QUE SE OVALOU
Após ouvir Ailton Krenak afirmar que na Terra existem habitantes de diferentes origens e que nem todos nós somos “filhos da terra", deito no meu modesto e privilegiado sofá para assistir ao épico de Stanley Kubrick “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Coloco em loop a cena em que os primatas são surpreendidos pela chegada do monolito. Depois congelo aquela outra, ao final do filme, em que um bebê parece ter sido acessado ou gerado da relação entre Homem e máquina, sem a figura materna.
Acho no mínimo irônico descobrir que foi filmado apenas por homens numa fábrica de sutiã abandonada em Nova York. Que foi inspirado no conto “Fora do berço, infinitamente em órbita” de Clarke, onde temos contato com o primeiro filho em toda a história da humanidade vindo de fora da Terra. E que o monolito era para ser transparente e ter formato piramidal, mas foi substituído para melhor efeito cinematográfico pelo tetraedro preto e opaco que tanto se parece com nossos iPhones e arranha-céus.
Parto da violência implícita na palavra “arranha-céu” e do egocentrismo naturalizado pela palavra em inglês “iPhone”, para evidenciar o quanto somos nós os filhos do estupro assexuado da natureza pela máquina.
Termino o filme com vontade de pegar uma marreta e arredondar as pontas da escrivaninha, as do computador, do sofá onde me deito e principalmente as da televisão. Destruir os cantos da parede, do telefone, do prédio, da cidade, das mentes terraplanistas e dos corações cubistas.
Como diz a própria Clarice, o ovo nos põe em perigo. Quem luta por torná-lo retangular está perdendo a própria vida. Os homens parecem não saber que a Lua é habitada por ovos. E que é para que o ovo atravesse os tempos que a galinha existe. Mãe é para isso. A natureza não joga dados, nossos corpos são redondos.
A BANALIZAÇÃO DO OVO
Conta-se que Cristóvão Colombo, em um banquete comemorativo pela “descoberta” da América, foi perguntado se acreditava que outra pessoa poderia ter sido responsável pelo feito. Para responder, ele desafiou todos os presentes a colocar um ovo de galinha fresco em pé sobre uma de suas pontas. Os presentes aceitaram o desafio mas, depois de algum tempo, como ninguém conseguiu, ele resolveu mostrar a solução. Bateu com uma das extremidades do ovo de leve na mesa, de forma que se achatasse e pudesse ficar em pé. Alguém exclamou que aquilo qualquer um poderia fazer. Colombo respondeu que, de fato, após ele ter mostrado o caminho para o Novo Mundo, qualquer um poderia chegar lá, porém qualquer um que tenha tido a ideia, o ímpeto e a audácia de colocá-la em prática.
Olhando para esta narrativa de outra perspectiva, e de novo agradecendo ao ovo por existir, fica evidente o gesto colonizador. Colombo escolheu o caminho mais fácil para o progresso, violentando o estado natural das coisas.
Não é novidade para ninguém que a América já era habitada há milênios por povos espalhados por toda a sua extensão. A Teoria da Terra Preta de Índio parte da descoberta de sítios antropológicos espalhados pela Amazônia, para comprovar a existência de uma civilização vivendo de forma sustentável na América, antes da chegada dos europeus. Sabe-se também que viviam livres de todo o tipo de doenças criadas e trazidas pelos navegantes.
Com a pandemia, aquilo que era velho ou considerado subdesenvolvido, como espalhar-se de forma mais homogênea pelo território ou manter uma relação saudável com o meio, começa a parecer revolucionário, enquanto aquilo que foi considerado desenvolvido, como violentar animais e territórios, se prova arcaico. A mentalidade do velho mundo cultiva vírus e bactérias e os espalha desde que uma das extremidades do ovo foi quebrada para poder se encaixar à superfície lisa de uma mesa por Colombo.
Que ligação podemos traçar entre a instabilidade econômica, que tanto preocupa o atual governo nesta pandemia, com o primeiro ovo que foi colocado sentado?
Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade, nos avisa Clarice. Mas independente de quem esteja sentado na ponta da mesa, comemorando invasões e violências mascaradas de descobertas, tomemos cuidado para não fazer com a pandemia o que fizemos com o ovo.
O ovo se tornou um ovo de galinha.
O ENSAIO É UM OVO
Abro o Google e coloco a palavra “tentante”. Estou procurando por um texto que fale sobre o gesto ensaístico de tatear o que se quer dizer, ao invés de concluir uma opinião. Deparo-me, no entanto, com uma enorme quantidade de artigos e fotos relacionadas a tentativas de engravidar. E, de fato, não podemos esquecer que são os ovos não fecundados que vão para o mercado para alimentar a fome da humanidade. E que, a cada mês, não são somente as galinhas quem produzem tentativas de trazer novas formas de vida à tona.
Talvez seja este o motivo de minha paixão pelo meu corpo. No meio de tanta busca por resultado, entregas e resoluções, é um alívio ser mulher e não precisar ter certezas. Eu, ao menos, não sei. Sigo tentando. E assim como Clarice, tomo o maior cuidado de não entender nem o ovo, nem a pandemia. Deixo ambos inteiramente protegidos pelas palavras. O que eu não sei do ovo ou sobre a pandemia (e ninguém sabe) é o que realmente importa. Aproximo-me do ovo, da galinha e do meu próprio corpo, mas mato a minha fome sem deturpá-los.
Deixo para as pessoas que gostam das certezas, o gesto de fritar. E podem inclusive usar um daqueles utensílios de cozinha que os permite separar a gema da clara, depois que o ovo foi quebrado. Ou mesmo aquele outro que colocado na frigideira permite moldar o formato da gema e da clara ao calor do fogo. Sinto calafrios quando lembro que chegamos a restringir a felicidade, sobretudo a da mulher, a uma cozinha bem equipada.
O OVO É A CRUZ DA GALINHA
“Etc., etc., etc... é o que cacareja o dia inteiro a galinha.” Mas se ela pudesse falar, talvez convocasse uma greve como fizeram os entregadores e motoboys da cidade de São Paulo, por melhores condições de trabalho e remuneração. Desde que a quarentena começou, o serviço dos entregadores cresceu abruptamente, embora suas condições de trabalho tenham seguido igualmente ordinárias.
A cruz que a galinha carrega também foi ficando mais pesada, a cada dia, desde que começou a pandemia e o churrasco começou a sair caro. Na verdade, o brasileiro tem comido cada vez mais omelete e ovo frito, no decorrer dos últimos quinze anos. Enquanto a pandemia trouxe perrengue financeiro para a grande maioria de nós, os donos de granja e de supermercados só ficam com os bolsos cada vez mais cheios.
Muito antes do confinamento virar tema, já havia um exército de galinhas vivendo em regime de criação intensiva no Brasil. Que tal passar a quarentena recebendo choque elétrico nos pés para que você siga acordado? Viver a vida sem poder abrir os braços? Ou ter parte da boca amputada para que você não possa agredir os seres confinados junto com você? Como ser feliz sem tomar sol? Como ser saudável tendo dia e noite otimizados pelo lucro dos acionistas?
Esta é a realidade das galinhas. E para piorar, são cuidadas por pessoas simples que dedicam suas vidas ao campo, muitas vezes não recebem o que deveriam, não cobram horas extras, não tiram férias ou reclamam pelos seus direitos trabalhistas.
Os donos de granja, verdadeiros “reis do gado” da avicultura, tem dedicado algum espaço para criar galinhas soltas e atender à demanda “consciente”, mas investem muito mais em dourar sua imagem perante o público, que segue comprando os ovos de ouro, brutalmente lucrativos, produzidos por suas aves maltratadas. A abolição por completo da escravatura da galinha e do caipira não tem data certa para acontecer e a passividade dos nossos fígados só contribuem para manter o status quo.
Titi, por outro lado, possui um pequeno sítio em Águas de Lindoia, onde cria cinquenta galinhas caipiras soltas, livres para ciscar na terra, bater asas e correr. Ao contrário de alguns granjeiros vizinhos, comercializa somente para amigos, conhecidos e moradores da nossa pequena cidade no interior de São Paulo. Foi no colo dele que comi a minha primeira jabuticaba e era dele que meu pai recebia ovos e outros produtos caipiras como pagamento por consultas médicas, durante a minha infância.
Quando produtores e consumidores estão mais próximos, é desnecessário o meio-de-campo que só despenca a qualidade e transforma tudo em número. Mas será que esta pode se tornar uma realidade para moradores das grandes metrópoles? Ou trabalhando remotamente poderemos deixar de nos confinar em centros urbanos?
Seguindo a onda de resgatar modos antigos de viver como alternativa, enquanto chineses comem carne de animais exóticos para suprir seus vazios existenciais, no Tibete cadáveres humanos são carregados para o alto de uma montanha, onde são despedaçados e servidos a abutres. O ritual é batizado de “bya gtor”, literalmente “espalhamento pelas aves”. Este “enterro celeste” acontece há milhares de anos para retribuir aos animais pelo alimento que em vida eles serviram.
Se um dos futuros possíveis for mesmo o resgate do passado, talvez o ovo possa voltar a ser a libertação da galinha. Ainda assim, mesmo com o destino relegado a elas, o ovo não luta. O ovo sempre foi um dom. Fiz uma conta aproximada de quantos comi até o dia em que me tornei vegana e, assim que morrer, peço que entreguem meu corpo aos abutres.
O OVO E O CONFINAMENTO
A galinha é o disfarce do ovo, que existe muito antes dele ser trazido ao mundo. Dentro da galinha, ele está duplamente confinado, já que a própria galinha tem o ar constrangido. Muito antes da pandemia, já chamava de erro a sua vida. Para ela, e talvez para muitas mulheres, estar viva chega a doer. Está na sua condição não servir a si própria.
Somos a grande maioria entre os profissionais de enfermagem, cuidadores de idosos e educadores. Somos milhares de domésticas, dentre as quais, um terço não tem contrato. A nossa vida pode não interessar a ninguém, mas serve a muita gente, exatamente como a das galinhas.
Talvez tenha sido este o sentimento que me fez hesitar em nascer mulher, embora uma vez confinada dentro da barriga de minha mãe, não tenha me sobrado opção. Talvez tenha sido este o sentimento que me fez hesitar em sair de casa, se para isso fosse necessário usar máscaras. Acredite você, ou não, há vidas tento ser livre, vista e ouvida. Houve uma delas em que me escondi numa aldeia, noutras foram conventos. Já fui também tão escrava quanto ainda são as galinhas. Também já me escondi em monastérios budistas. O isolamento, para mim, sempre foi uma forma de resistência. Sempre achei melhor me fechar, do que ter que me tornar uma pessoa que não sou, ou ter que me adaptar a um sistema que não acredito. Demorei para pegar a senha de entrada no mundo. Estar confinada de novo, agora por conta de um vírus, me fez revisitar estes lugares sombrios. Talvez eu também já tenha sido uma galinha.
O fato é que a grande maioria das galinhas brasileiras ainda são criadas dentro de gaiolas proibidas em toda a União Europeia há oito anos. Elas são amontoadas em galpões e gaiolas, ocupando meia folha A4 para viver. Percebo o quanto eu evoluí. Mas, ainda assim, sinto-me tão solidária às galinhas, que penso em fazer todas as palavras deste ensaio caberem em meia folha de A4.
A escrita e o meu corpo hoje são territórios que habito com cada vez mais liberdade. Ovular me mantém viva. Ler e escrever me mantém ignorante. Mas as galinhas, por outro lado, seguem impedidas de abrir as asas, ciscar na terra, caminhar e se empoleirar. Qualquer semelhança com a história das mulheres, limitadas aos cuidados com a casa e com os filhos, num passado não tão distante, não é mera coincidência. Ainda hoje nos dedicamos duas vezes mais a cuidar dos outros e da casa, mesmo quando somos responsáveis pelo sustento da família. No final das contas, estar confinado é doar-se. Talvez Clarice estivesse certa quando diz que ser um espaço e ter uma casca é dar-se.
Estressadas e anestesiadas, galinhas e mulheres vêm passando por processos graduais de depressão que nos torna muito suscetíveis a organismos invasores. Durante a pandemia, para citar um exemplo, a quantidade de olho roxo e invasões íntimas provocadas no corpo feminino dobrou no Brasil e triplicou na China.
No caso das galinhas, o grau de estresse é tamanho que bicam e muitas vezes ferem de morte as “companheiras de cela”. Também entre mulheres é comum este comportamento, já que fomos tratadas como produto por longa data, assim como ainda são as galinhas e seus ovos, disputando entre nós tão pouco espaço de acolhimento e projeção.
É comum ver galinhas desenvolverem deformações de perna e de pata por passarem a vida toda dentro de gaiolas. Nas mulheres, as deformações por tantas gerações condenadas ainda aparecem na forma de síndromes como a do ovário policístico, câncer de mama, endometriose, bulimia, mioma e depressão.
Como forma de evitar o adoecimento das galinhas, os produtores usam antibióticos na ração todos os dias, mas isso aumenta o risco de aparecimento de doenças altamente nocivas ao humano. As substâncias ingeridas pelas galinhas acabam no ovo que consumimos. A gripe aviária é um exemplo deste processo.
Nas mulheres, os tratamentos alopáticos cuidam dos sintomas, mas não resolvem a origem do problema. A ingestão de alimentos carregados de substâncias nocivas, como os próprios ovos comuns, também termina em nossos óvulos que, quando fecundados, dão origem a novas genéticas humanas. Além disso, é através do corpo das mulheres que qualquer um aqui chega ao mundo. Nietzsche mesmo, por exemplo, conta que ao nascer pulsante, encontrou apenas atrofia e diminuição. Conta que o corpo de sua mãe era tão frio quanto uma cômoda de mármore.
No romance “Sobre os ossos dos mortos”, da escritora Olga Tokarczuk, ela lança a possibilidade de animais estarem começando a se vingar dos humanos. E teriam razão para tal, não estivessem os próprios humanos já fazendo o suficiente para se autodestruírem, começando por tratar mal seus corpos, as mulheres e as galinhas.
GALINHA, S. F.
1. “fêmea adulta do galo”, vejam vocês. Se tivesse nome e sobrenome, provavelmente seria o da família do galo. Nas granjas, com muita sorte, talvez ganhe um número;
2. “ave criada para produção de carne e ovos”. Sem existência própria. Destinada a ser digerida por intestinos que sequer foram criados para comer carne;
3. “embora tenham asas, não são capazes de voar mais que alguns metros de cada vez”. E até mesmo este voo baixo, lhes é tirado;
4. sinônimo de “penosa”. Sofrida. Dolorosa. Difícil. Mal tratada;
5. Prato preparado com a própria ave doméstica. Frequentemente aos domingos;
6. Se for preta, chuta que é macumba.
Existe também o adjetivo pejorativo dedicado à mulher que transa com vários parceiros, talvez fazendo uma analogia ao gesto de ciscar, que é metáfora para o não comprometimento. Ao pesquisar, no entanto, sobre o comportamento das galinhas, descobri que são um dos animais que têm mais desenvolvida a capacidade de empatia com seres da própria espécie. O ser humano, nem sempre.
No romance “A vegetariana”, da escritora sul-coreana Han Kang, somos levados a sentir o cheiro do sangue naturalizado no ato humano de consumir animais lado a lado com o gesto silencioso de estuprar o corpo feminino. Ao se tornar vegetariana, a protagonista começa a escancarar tabus milenares, até ser internada num manicômio. Chega a cavar um buraco para plantar a cabeça na terra e se deixar brotar por entre as pernas, como fazem as árvores, nos levando por extremos do erotismo, da loucura e de uma clareza atordoante.
E, por falar em sanidade, depois de quatro meses em quarentena, uma amiga foi internada num hospital psiquiátrico em plena conclusão de seu doutorado sobre a relação entre violência, sexo e alimentação, por não conseguir acreditar na realidade.
O AMOR E O OVO SÃO CEGOS
A forma com que eu lavo copos, panelas ou cozinho, diz muito sobre mim e sobre a minha forma de me relacionar com as coisas. A forma como meu parceiro cuida dos cachorros ou lava compras para garantir que estaremos livres de contágio, diz muito sobre ele. Nenhuma destas observações são passíveis de serem teorizadas, as cito para nos endereçar ao espaço entre elas. Interessa-me o que o silêncio descobre sobre nós. O amor, assim como o ovo, só pode existir onde há espaço. E o espaço a que me refiro aqui, não tem a ver com o tamanho da nossas cascas, quero dizer, casas. Não se ama por identificação ou afinidade. Também não existe um ovo igual a outro, ainda que se pareçam todos iguais.
Aproveito para acionar o velho barbudo que explicou a origem das espécies, Darwin, ele mesmo, para relembrar que uma espécie é tão saudável quanto mais diversa for sua população, conceito há milênios vivenciado pelos povos indígenas da América. A evolução e o amor estão relacionados à adaptabilidade e à diversidade e não à supremacia ou ao narcisismo. Os vírus também estão aí se diversificando e se adaptando para comprovar isso. Mas voltando a falar sobre amor, foram muitos os casamentos que não resistiram à quarentena, assim como as galinhas. Dizer que o Brasil é o maior exportador mundial de galinhas é operar na lógica em que a vida deixa de ser vida e se torna moeda de troca. Talvez tenha acontecido algo parecido com os relacionamentos.
Clarice nos esclarece que o Amor é quando nos é concedido participar um pouco mais. E a participação só pode acontecer nestes espaços neutros, diversos e intermediários. Poucos querem o amor porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. Para adentrar este espaço vazio, é preciso se despir. E neste ponto acredito que a pandemia tenha nos ajudado, nos colocado diante da remota possibilidade de experimentar o mais sublime dos sentimentos, ainda que poucos suportem perder as suas ilusões.
Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal, diz Clarice. E eu concordo quando ela afirma que o que acontece é justamente o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.
Eu te amo, ovo.
POR DEVOÇÃO AO OVO, EU O ESQUECI
Talvez tenha acontecido na quarta de cinzas. Quem poderia imaginar que depois do Carnaval viria uma pandemia? Não me lembro bem, mas houve uma noite em que senti tanto prazer que pensei que se um dia concebesse um filho/a, gostaria que fosse daquela maneira. Se o prazer é uma recompensa, tive convicção que passei a merecê-lo, ainda que seja uma mulher. Ou será que fui iludida? Teria o prazer servido apenas para me distrair enquanto o ovo se fazia?
Minha menstruação atrasou consideravelmente e passei a urinar nove vezes ao dia. Percebi alterações de humor e também vontade de comer comidas específicas. Estava certa de que havia dentro de mim um ovo. Não posso negar que a possibilidade de carregar uma outra vida dentro de mim me colocou num estado alarmado de felicidade e pânico. Um ovo crescendo do lado de dentro do meu corpo certamente ocuparia o vazio que aprendi com muito esforço a amar. Por outro lado, um ovo crescendo do lado de dentro me esvaziaria ainda mais de certezas, e isso me deixou excitada. Senti culpa por ter sentido medo. Mas irritou-me a quantidade de projeções que existiam dentro de mim sobre ovos ou a possibilidade de concebê-los. Comecei a conversar com ele e talvez o tenha assustado.
Então houve uma noite em que sonhei com minha avó materna. Seu abraço parecia delimitar as fronteiras de outro ovo, onde eu me inseria. E, como diz Sloterdijk, nascer talvez não seja mais que a passagem de um interior mais estreito para outro mais amplo. Tive cólicas fortes e pela manhã encontrei um sangramento na minha calcinha. Fiz três testes para conseguir acreditar no resultado, que desde então deu negativo. Talvez eu tenha quebrado o ovo com a minha covardia. Senti dor, tristeza e depois alívio. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue, cita Clarice em seu conto. E de novo me conecto com as galinhas. Mais uma vez me prostro ao ovo e ao meu próprio corpo.
As tentativas de explicar o ocorrido foram várias, de gravidez psicológica a gravidez química. Se o ovo foi fecundado, por algum motivo não se fixou na parede do útero. É comum acontecer com mulheres acima dos quarenta. Talvez ao prestar atenção demais à tentativa de vida que se fazia dentro de mim, eu a tenha violado.
O meu diagnóstico evoluiu para um hipotireoidismo, que apresenta sintomas muito parecidos aos de uma gravidez. Terminei de curá-lo esta semana, apenas alterando a forma como resolvi me relacionar com meu corpo. Talvez eu mesma estivesse nascendo de dentro de um espaço mais estreito de mim. E embora a palavra grega páthos, que origina “patologia”, venha carregada de conexões com sofrimento, doença e pandemia, ela também vem cheia de paixão e afeto. O páthos da confiança no mundo e do mergulho criativo nele, em Sloterdijk e Winnicott, muito difere do sim genérico e especulativo de Nietzsche ou Epicuro.
Faço parte dos que, como Clarice, esqueceram o ovo como forma de protegê-lo. Para que livre, e delicado, sem mensagem alguma para mim retorne, e se locomova do espaço até esta janela, que desde então deixo aberta.
Eu digo sim ao ovo.
REFERÊNCIAS:
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
FREITAS, Eduardo de. Formação da Terra segundo os chineses. Brasil Escola. Dispo- nível em: https://brasilescola.uol.com.br/geogra a/formacao-terra-segundo-os-chi- neses.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
KANG, Han. A vegetariana. São Paulo: Todavia, 2018.
LIAN, Yi-Zheng. Por que o surto de coronavírus começou na China? Trad. Augusto Calil. Estadão, São Paulo, 03 mar. 2020.
LISPECTOR, Clarice. O Ovo e a Galinha. In: A Legião Estrangeira. São Paulo: Ática, 1977, p. 81-84.
NIETZSCHE. F. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. A Gaia Ciência. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006.
PESSANHA, Juliano Garcia. Recusa do não-lugar. São Paulo: Ubu, 2018.
POMAR, Marcos Hermanson. Quando a embalagem esconde a realidade: choques, maus-tratos e fraudes na vida das galinhas “livres de gaiola”. O joio e o trigo. 17 jun. 2020.
WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Elefante, 2020.